Qual o seu nome?


diariodonordeste.verdesmares.com.br/ceara/

Essa questão de registrar nome dá o que falar. É um assunto que me faz lembrar de casos curiosos. Não somente daqueles que consideramos excêntricos, mas também os nascidos da junção dos nomes dos pais. Porém, além desses, existem inusitadas cenas associadas a este simples, contudo importante ato para a vida de quem está vindo ao mundo. Algo que pode ser muito normal ou se transformar em um peso eterno, a depender daquele que vai ao cartório selar esta parte do destino.

Pensando nisso, lembrei do pai de uma amiga, o qual foi registrar a filha recém-nascida e pegou em seu bolso o papel onde a esposa havia escrito o nome completo da criança para que entregasse ao tabelião. Porém, ela não havia imaginado que o marido ao ler o nome ali colocado, o olharia várias vezes até concluir não ser a alcunha ideal para a filha, algo que só lhe soou mal quando estava na iminência de concretizar aquela ação definitiva. Como precisava rapidamente encontrar outro, foi assim que chegou em casa com a certidão, carregando o nome de uma personagem de um livro que havia lido. É claro que a esposa ficou chocada com a atitude do marido. No entanto, anos depois a filha agradeceu ao pai pelo nome escolhido.

Há poucos dias ouvi uma história quase igual. Lembrei da minha amiga e da escritora Zélia Gattai, a qual contou no livro Anarquistas Graças a Deus sobre os episódios em que o pai e o vizinho fizeram o mesmo. Em todas as ocorrências, a mãe escolhia o nome e o pai mudava. É o tipo de coisa que é mais comum acontecer do que imaginamos.

No meu caso, meu pai escolheu o nome. Então não houve polêmica, tendo saído para fazer o registro em acordo com a minha mãe. Nunca tive sentimento algum sobre essa escolha. Apenas achava curioso não encontrar uma xará, embora já tenha conhecido pessoas que me falaram ter sido apresentadas a alguém homônima a mim.

Apesar de não ser fruto de uma dessas situações, entretanto, existe um fato recorrente em relação ao meu nome: as pessoas costumam se confundir ao ler a sua grafia. Não que seja difícil ou estranho ao português, mas sempre tenho a impressão de que imaginam ser um outro nome, porém escrito erroneamente. O resultado disso é que terminam por pronunciar o que acham ser o correto, e sei que sou eu por causa do sobrenome. Isso costuma acontecer em consultórios médicos e laboratórios, quando é a minha vez de ser chamada.

E sempre foi assim até que um dia ocorreu algo diferente ao me dirigir a uma agência bancária, a fim de resolver um problema com a minha conta. Fui encaminhada a uma atendente à qual entreguei a minha documentação. Assim que ela leu os meus dados pessoais, passou a repetir o meu primeiro nome insistentemente para que eu confirmasse se era aquilo mesmo. Ao confirmar, ouvi a sincera indagação sobre como um pai teria a coragem de colocar um nome daqueles em uma filha. Diante do inusitado, fiquei sem acão e saí de lá perplexa com a franqueza e o inconformismo da funcionária do caixa, praticamente uma indelicadeza.

Outro dia, lembrando desse fato, meu marido me contou ter ido a um órgão de educação para buscar um documento da sua mãe. No entanto, após informar o nome dela, para que a funcionária localizasse a documentação solicitada, de forma semelhante ao ocorrido comigo, ouviu o nome da sua mãe ser repetido juntamente com a opinião sincera de que era um nome muito feio. Na ocasião, ele estava no início de uma fila de pessoas que aguardavam atendimento, então sem se fazer de rogado, perguntou em alto e bom som o nome dela, e quando ouviu a resposta, devolveu no mesmo tom que era um nome horroroso. Segundo ele, todos na fila começaram a rir e ela, com expressão de contrariedade e rispidez entregou o documento.

Ao chegar em casa e contar à mãe o ocorrido, esta sentindo-se defendida, se divertiu com a história. Quanto ao meu caso, não posso dizer que achei graça ou tive raiva. Pareceu tão despropositada a atitude da bancária em relação ao meu nome, que afinal, foi uma homenagem a uma famosa jornalista e não foi trocado no cartório, que não me abalei com o ocorrido. No fim é uma questão de gosto. Não constrangendo o dono, não importa quem ou como foi escolhido.

06/04/2024


Estranha partida

Foto: Abigail (joyflowerphotography)

Para uma amiga

A última vez que nos encontramos foi em um encontro de mulheres em busca de crescimento interior. Seria um momento de descontração e de aprendizados sobre nós mesmas. Entretanto, uma vez mais ela viu como uma oportunidade de também reviver um passado não resolvido, de revolver velhas feridas.

Bastava cair em um assunto que a remetesse aos traumas de uma criação dolorosa, para cenas daqueles duros capítulos virem à tona. Era uma vida inteira para relembrar, se entristecer, chorar e até achar graça. Uma bagagem que carregava aonde quer que fosse. Uma vivência contraditória entre risos e lágrimas. Uma natureza alegre, uma gargalhada fácil que contaminava quem a cercava e incomodava os não afeitos a esse tipo de expressão positiva.

Quando a conheci na empresa em que trabalhava, logo trocamos amabilidades e nos afeiçoamos. Nossos momentos de tensão no trabalho eram compartilhados e uma apoiava a outra. Eram tempos difíceis, quando precisávamos lidar com chefias de egos inflados e situações de assédios morais. Tenho a convicção de que suportei tais experiências, porque nos piores momentos suas palavras de apoio eram o impulso de que precisava para sair do estado mental em que era jogada a cada episódio depreciativo.

Ela, por seu lado, também sofria suas injúrias como no dia no qual que seu chefe a proibiu de liberar sua risada descontraída no ambiente laboral. Ele a convocou para uma conversa na sala de reunião ao lado da minha. Do meu birô, pude ouvir o choro da minha amiga ao receber aquela ordem descabida. A princípio, fiquei penalizada ao perceber o efeito daquela determinação, mas depois a convenci de fazer daquilo um motivo para rirmos ainda mais. Afinal o chefe era um líder de atitudes incoerentes e, por vezes, dissonantes do cargo que ocupava, como cochilar em reuniões importantes.

Em nossas conversas no horário do almoço, refeição que fazíamos juntas, me divertia com suas histórias de vida, cheias de desventuras. Ela foi a única pessoa que conheci capaz de rir e chorar de uma mesma história, depois de contá-la com exageros e tudo o mais.

Apesar dos pesares do dia a dia na empresa, tivemos momentos divertidos em que fazíamos um trabalho juntas para atendimento externo, fora do nosso ambiente diário. Foram inúmeros almoços ao lado de outros colegas de uma equipe que nos apoiava tecnicamente. Dávamos boas risadas caçoando uns dos outros quando o contexto criava a oportunidade.

Foram seis anos de convivência na empresa. Nesse período, acompanhei o crescimento dos filhos dela ao saírem da adolescência para a vida universitária, bem como os problemas de uma mãe para lidar com essa transição. Testemunhei o seu extremo amor aos filhos e ao marido com o qual viveu uma história permeada de peculiaridades. Além disso, vi de perto o quanto era uma pessoa na qual as emoções estavam sempre à flor da pele e em níveis que beiravam os extremos. Tudo tão exacerbado! Não era uma novidade quando ela somatizava as ocasiões em que a vida lhe colocava à prova. Volta e meia estava no departamento médico. O remédio: quando não recebia um ansiolítico, simplesmente era encaminhada para repouso na enfermaria.

Quando saí da empresa mantivemos a amizade. Nos encontramos algumas poucas vezes a fim de colocar as conversas em dia, mas quando isso não era possível, falávamos por telefone ou via mensagens. No nosso último encontro, pude perceber o quanto ainda vivia assombrada pela traumatizante criação recebida de uma mãe que rejeitava alguns de seus filhos. Tentei ajudá-la, alertando-a de que precisava cuidar para espantar esse fantasma do passado. No entanto, já era muito tarde. O mal já estava feito. O constante sofrimento ao qual se condenou, minou sua vida e saúde.

De repente, minhas mensagens para ela começaram a não ter retorno. Não tinha outra forma de nos comunicarmos e quase dois anos depois da última resposta, fui contactada por sua filha. Ela me contou que a mãe que ela possuía praticamente havia partido. Em seu lugar pousara um espírito triste, estranho, dependente e muitas vezes ausente. Era apenas um corpo quase sem memória que gradativamente desaprende, como uma fita que vai sendo apagada do fim para o começo.  Agora um Alzheimer comandava aquele corpo e alma. Se antes era cheio de emoção, vida, energia, personalidade, após a doença, apenas um olhar distante parece habitá-lo, falando tudo por si só.

Foi um choque receber essa notícia. Tive a sensação de um luto. Sabia que havia perdido a minha amiga. Sem que pudéssemos nos despedir, seu espírito partiu e hoje sou uma vaga lembrança para ela. Queria muito ter lhe dito o quanto foi importante para mim e lhe falar de coisas minhas as quais tenho certeza de que a deixariam feliz. Fiz isso por uma vídeo chamada em uma janela de relativa lucidez dela. Foi como se ela visse uma velha e boa conhecida. Esboçou um sorriso distante, lembrou que eu significava algo de bom para ela e me devolveu um beijo que lhe transmiti. Ela ficava genuinamente feliz com as minhas conquistas. Era alguém com quem eu podia brincar livremente, sempre reagindo com uma divertida risada ou um sorriso meigo, pois era como me tratava.

Saudades de você amiga! E onde quer que sua consciência esteja, sinta a boa energia a qual fluía entre nós. Em sua última mensagem para mim, você deixou registrada a falta que sentia da nossa convivência e que seríamos amigas para sempre. Sim. Seremos.

29/02/2024